Eu não era um garoto que dava trela para super-heróis.
Nunca tive bonecos, nunca gostei do Hulk, do Homem-Aranha, do super capitão de cueca fora das calças.
Minha onda sempre foram os carros, as corridas.
E, aos nove anos, eu já cumpria o ritual dos fins de semana de Formula 1: assistia aos treinos nos sábados e as corridas, nos domingos. Verdade que não conseguia ver todas as provas. Minha mãe levava o meu irmão e a mim à igreja aos domingos, mas eu conseguia pegar ao menos os primeiros 30, 40 minutos das corridas e, quando reencontrava meu pai, ao entrar no carro para voltar para casa, a primeira coisa que eu perguntava era quem tinha ganhado.
Mas aquele fim de semana foi diferente.
No sábado, 30 de abril de 1994, eu estava na sala assistindo ao treino classificatório para o GP de San Marino. Naquela época a fórmula dos treinos era diferente. Os boxes eram abertos por uma hora e, durante aquele período de tempo, todos os carros iam para a pista lutar pelos melhores tempos.
No meio do treino, pulei no sofá quando percebi o tamanho da pancada de Roland Ratzenberger, piloto
austríaco da Simtek. A cena que me vem à mente até hoje daquele acidente é de parte do corpo de Ratzenberger para fora do carro e do sangue sobre a viseira do capacete.
Fiquei chocado, meu coração parou na goela. Apesar de ainda criança, eu já tinha noção da gravidade daquele acidente. Para reforçar meu susto, eu ainda estava com as cenas na cabeça de outro acidente, o de Rubens Barrichello no dia anterior. A batida tinha sido muito forte, ao ponto de quando viraram o carro de Barrichello, a cabeça do brasileiro ricochetear sem reação, denunciando que Rubinho estava desacordado.
Ver Ratzenberger daquele jeito foi apavorante, especialmente para uma criança de nove anos.
Lembro-me de pouca coisa depois do acidente do austríaco, mas me recordo das cenas de Ayrton Senna transtornado, já ciente da morte de Ratzenberger. O acidente havia sido claramente violento demais e o piloto não suportara.
Hoje digo sem medo de errar que Roland morreu na pista.
No domingo,1º de maio, sei lá o porquê não fui à igreja. Recordo-me de meu pai e eu na sala, assistindo a corrida. Juro que não lembro-me de meu irmão ali. Léo, você estava conosco?
De qualquer forma, o clima da corrida era estranho.
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Senna no grid em Ímola. Foto: The Cahier Archive |
Estava evidente a tensão, os pilotos no grid tinham expressão carregada. O acidente grave de Barrichello e a morte de Ratzenberger deixava no ar uma sensação de que aquela corrida não tinha que acontecer.
Galvão Bueno chegou a repetir várias vezes antes da largada que tudo o que todos queriam era que aquela corrida acabasse bem. Frases que não faziam muito sentido para um evento esportivo, para a festa que eu estava acostumado a ver nas pistas.
Já na largada, as coisas não correram bem. J.J. Letho teve problemas em sua Benetton e não conseguiu partir. Vindo do fundo do grid, o português Pedro Lamy não teve como desviar e bateu forte na Benetton parada. Um pneu do carro de Lamy voou em direção à arquibancada e feriu a nove torcedores.
Safety-car na pista.
Lembro-me da troca de câmeras durante as voltas do carro de segurança, que quando pulavam para o carro de Schumacher, mostravam a traseira do carro do líder, Ayrton Senna.
Na relargada, Galvão tinha a voz pesada, ainda.
Até escrever sobre esse momento é algo que me arrepia. Naquele ano eu tinha passado recentemente pela minha primeira experiência de perder alguém que admirava. Meu avô paterno, Joaquim, havia morrido fazia pouco tempo, em janeiro. Era recente na memória, que é viva até hoje, a cena de meu pai atendendo ao telefone em uma tarde de domingo. Aquele telefonema trazia a notícia da morte de meu avô.
Na relargada, Senna manteve-se à frente de Schumacher. Quando o brasileiro fez a tomada para a curva Tamburello, a TV exibia as imagens de dentro do carro do alemão. Naquela tomada, foi fácil identificar a linha reta que a Williams nº 2 tomou, fugindo da tangência da curva em direção ao muro.
"Senna bateu forte", disse um assustado Galvão Bueno.
De pé, no meio da sala, assistia àquela cena inacreditável. A Williams girava na pista, peças voavam. O carro parou e a cabeça de Senna pendeu para a direita. Eu fiquei em choque e senti um certo alívio quando Ayrton moveu-se levemente no cockpit.
Alívio que não se inflava. Não enxergava em Senna reações que estava acostumado a ver em outros acidentes. Ele não bateu no cinto, não sacou o volante, não pulou do carro. Ficou inerte, assim como Barrichello e Ratzenberger. Meu desespero com aquela situação era tão grande que fui parar no banheiro. O intestino desandou de tensão.
Ao voltar para a sala, os médicos atendiam a Senna sobre a brita da área de escape. Dava para ver o sangue tingindo as pedras, apesar das tentativas inócuas do helicóptero da geração de imagens de evitar captar cenas chocantes.
Alguns minutos depois, Senna foi colocado em um helicóptero, em uma maca.
As imagens acompanharam a aeronave até ela sumir no horizonte.
Passou-se algum tempo e a corrida foi reiniciada. De tempos em tempos, boletins com informações vagas me davam algum esperança de que Senna sobreviveria.
Fim de prova. No pódio Schumacher, Nicola Larini e Mika Häkkinen recebiam os troféus e comemoravam.
Aquela celebração dos vencedores acendeu em mim certa esperança. Pilotos não comemorariam se soubessem o estado de Senna no hospital.
Hoje, acho que eles realmente não sabiam.
Apesar do fim da transmissão, fiquei na sala. Nunca mais me esqueci do hospital Maggiore e da cidade de Bolonha, para onde Ayrton Senna foi levado depois do acidente.
Perto das 14h, Léo Batista apareceu na tela pequena da Toshiba de madeira e deu a notícia que eu não queria ouvir. Por telefone, Roberto Cabrini confirmava a informação de que meu herói tinha morrido.
Chorei.
O resto do dia foi uma merda.
Já à noite, quando o Fantástico terminou com as imagens da carreira de Ayrton com o tema da vitória de fundo, eu chorei mais uma vez.
Estava no sofá da sala, com minha mãe ao lado, que me fazia um carinho, tentava me acalmar. Mas sei lá, acho que naquela hora todos ali choravam.
O meu herói e o herói de um País todo tinha morrido.
Injusto demais. Fiquei sem chão, porque apesar de não entender muito de super-heróis, tinha certeza de que eles nunca morriam.
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Ayrton Senna guiando pela McLaren. Foto: Getty Images |
Este texto também é minha
coluna da semana no
Drive Brazil. Mas, como o dia de hoje é especial, publiquei ela hoje mesmo, aqui no Punta.